Por Grazziani Colombo
Os implantes tecnológicos já ajudam paralíticos e surdos. A possibilidade de que no futuro ampliem a capacidade cerebral reabre o debate ético
Se a história universal ou a mecânica quântica já cabem em um “pen drive”, por que não podemos enfiar o pen drive diretamente em nosso cérebro? Assim poderíamos adquirir esses conhecimentos de forma instantânea. Com conexões diretas semelhantes, talvez pudéssemos nos enxertar uma espécie de Google na cabeça para buscar em nossa memória, ou ampliar nossa inteligência acoplando-a às modernas redes neurais e outros programas que aprendem com a experiência.
Esses casos concretos de interface mente-máquina ainda pertencem ao campo da ficção científica. Mas há outros que caminham entre nós e que já servem para examinar muitos dos problemas - técnicos e éticos - que previsivelmente decorrerão do futuro desenvolvimento dessas técnicas. Jens Clausen, do Instituto de Ética e História da Medicina da Universidade de Tübingen, Alemanha, analisa a questão na revista “Nature” e respondeu na semana passada às perguntas de El País.
“Discutir o acoplamento entre mente e máquina é tão velho quanto o filme ‘Metropolis‘”, diz Clausen. “O novo é que a conexão de um cérebro humano com um computador através de microeletrodos implantáveis é hoje uma opção científica real.”
A forma mais difundida dessas interfaces diretas são os implantes de cóclea no ouvido interno (imagem ao lado), usados para ajudar as pessoas surdas. Um microfone capta os sons e os envia para um pequeno computador, que contém um sistema processador de fala. O sinal processado é enviado para um receptor na cóclea, no ouvido interno, que estimula diretamente os neurônios do nervo auditivo que se comunicam com o cérebro.
Se isso ainda não parece uma interface mente-máquina, começará a parecer em pouco tempo. “As pessoas que têm o nervo auditivo danificado não podem se beneficiar desse sistema”, diz Clausen, “e já entraram em testes clínicos dispositivos semelhantes que, em vez da cóclea, são implantados diretamente nas áreas acusticamente relevantes do cérebro.” No fundo, a diferença são alguns poucos centímetros.
Outro caso são os integrantes de painéis de microeletrodos na retina dos cegos. Os sistemas que foram testados têm uma resolução muito parcial, mas mesmo assim bastam para que os pacientes evitem um galho de árvore quando andam pela rua, por exemplo, e também para distinguir entre um prato e um copo, ou para saber para onde estão se movendo os objetos à sua frente.
Esses eletrodos costumam receber os sinais de câmeras sem fio acopladas aos óculos, e depois os transmitem diretamente para os neurônios do nervo ótico. Dali chegam ao córtex visual primário, situado junto à nuca. Seu principal objetivo foi até agora os pacientes de retinite pigmentosa, um conjunto de enfermidades congênitas que causam cegueira através da degeneração das células fotorreceptoras da retina.
Mas, assim como com os implantes cocleares, os cientistas já estão testando versões que se conectam diretamente às áreas visuais do córtex cerebral. Só essas variantes poderão ajudar as pessoas que, diferentemente dos pacientes de retinite pigmentosa, tenham danificado o próprio nervo ótico.
A estimulação profunda do cérebro (”deep brain stimulation”, ou DBS, em inglês) já foi utilizada em cerca de 30 mil pacientes de Parkinson no mundo (imagem abaixo). Um pequeno computador subcutâneo envia sinais elétricos para eletrodos implantados profundamente no cérebro, para estimular os núcleos subtalâmicos afetados pela doença.
A técnica começa a ser estendida às fases mais precoces do Parkinson, e suas variantes estão sendo examinadas para o tratamento de outras doenças neurológicas.
Talvez as aplicações que mais se aproximam do futuro são as que permitem a um animal cobaia - e ocasionalmente um voluntário humano - mover objetos, membros mecânicos ou o cursor de um computador com a mente: quer dizer, só de pensar ou imaginar uma ação dentro de sua cabeça.
Em seres humanos isso foi testado com técnicas não invasivas, como um capacete eletroencefalográfico que capta as grandes ondas cerebrais, mas a precisão obtida é muito maior com eletrodos implantados no cérebro.
A implantação de eletrodos nas áreas motoras do córtex (as que normalmente dirigem os movimentos do corpo) está sendo testada há tempo em macacos e inclusive em pacientes humanos paralisados. Em alguns experimentos avançados com macacos, os movimentos são quase tão rápidos e precisos quanto os de um braço normal.
Um aspecto importante dessas últimas pesquisas é que os neurônios exatos acionados pelos eletrodos (entre 18 e 64, segundo o experimento) são selecionados ao acaso. Isso implica que, se o experimento funcionar, não é porque os cientistas conseguiram conectar a um computador o circuito neuronal exato que normalmente dirige esses movimentos (que, entre outras coisas, não se conhece, e provavelmente inclui vários milhões de neurônios, e não 18). Simplesmente o macaco aprende a modular a atividade dos 18 neurônios que acionaram mais ou menos ao acaso.
“Os avanços recentes nas neurociências, junto com a progressiva miniaturização dos sistemas eletrônicos, estão tornando possível a conexão de componentes técnicos às estruturas cerebrais”, diz Clausen. “É uma grande promessa para as pessoas paralisadas, porque representa a possibilidade de superar a lesão neurológica, onde a transmissão dos sinais do cérebro aos músculos é interrompida.”
A ideia por enquanto é que os sinais cerebrais sejam usados para movimentar pernas ou braços mecânicos. Mas o cientista não descarta a possibilidade de que “algum dia, no futuro, esses avanços possam restaurar o controle motor dos próprios membros naturais”.
Ninguém coloca objeções éticas à conexão entre cérebro e máquina quando o que se pretende é tratar uma doença ou melhorar as condições de vida das pessoas cegas, surdas ou paralisadas por um acidente. Outra questão é aplicar essas técnicas à melhora das capacidades naturais da mente humana, como nos exemplos futuristas do primeiro parágrafo.
Um primeiro problema, embora pareça trivial, é que seria preciso experimentar com pessoas saudáveis. Isso é comum nos testes clínicos de fase 1 (onde não se põe à prova a eficácia de um medicamento, mas sua segurança), mas os riscos de algumas intervenções cerebrais são altos demais para justificar seu uso em um voluntário são, pelo menos na atualidade.
Além disso, como essas tecnologias são bastante novas, seus efeitos em longo prazo são uma incógnita. O risco de sofrer um dano cerebral causado pela intervenção cirúrgica não compensaria os benefícios hipotéticos que uma pessoa sã poderia tirar de uma pesquisa desse tipo.
“Usar uma técnica com o objetivo explícito de melhorar as qualidades humanas envolve maiores exigências de segurança que sua aplicação médica”, explica Clausen. “No segundo caso, os riscos são aceitos em troca de melhorar a saúde ou mesmo de salvar a vida; mas esses mesmos riscos seriam inaceitáveis no primeiro.”
Nos dispositivos controlados pelo cérebro - como as atuais próteses mecânicas -, os sinais emitidos pelos neurônios devem ser interpretados, ou decodificados, por um computador antes de poderem ser lidos pelo membro artificial. A função do computador é prever os movimentos que o usuário quer executar. E todo sistema de previsão tem suas falhas.
“Isso conduzirá a situações perigosas, ou no mínimo embaraçosas”, prevê o cientista alemão. “Quem é responsável por um ato involuntário? Foi culpa do computador ou do cérebro? O usuário precisará de uma carteira de motorista e um seguro obrigatório para conduzir uma prótese?”
Esses problemas são, na realidade, semelhantes aos que a indústria do automóvel se coloca em relação aos dispositivos automáticos de condução. Também lembram as discussões jurídicas provocadas pela genética e as neurociências. Mas as tentativas de atribuir a responsabilidade penal por um comportamento belicoso aos genes do acusado ou a seus circuitos cerebrais não tiveram êxito em nenhum tribunal.
“Os seres humanos costumam manipular ferramentas tão perigosas e imprevisíveis quanto os carros e as pistolas”, diz Clausen. “A interface entre cérebro e máquina é um caso altamente sofisticado de uso de ferramentas, mas não deixa de ser um caso. Aos olhos da lei, a responsabilidade não deveria ser muito mais difícil de esclarecer.”
Outro campo de preocupação é que as máquinas possam mudar o cérebro. Por exemplo, embora a estimulação com eletrodos ajude pacientes de Parkinson que não respondem aos tratamentos farmacológicos, também apresenta uma maior incidência de efeitos secundários psiquiátricos, mudanças de personalidade e suicídios.
Mas isso tampouco é uma peculiaridade dessas tecnologias. Em 2004, por exemplo, a agência de alimentos e drogas dos EUA (FDA) fez que os prospectos de alguns antidepressivos fizessem constar certo aumento do risco de suicídio em adolescentes e nas primeiras fases do tratamento, associado ao uso desses fármacos. O habitual nesses casos não é renunciar aos tratamentos, mas sopesar os riscos e benefícios, informar, prevenir e respeitar as decisões autônomas que o paciente toma.
Há outras fontes de conflito ético que são mais inesperadas, como o das pessoas da comunidade surda que recusam os transplantes de cóclea. Essas pessoas não consideram a surdez uma incapacidade, mas uma espécie de “identidade cultural”. Para elas, portanto, os implantes são um caso de tecnologia a serviço da melhora das qualidades humanas naturais.
Um caso extremo desse conceito de mundo veio à luz em 2006, quando Sharon Duchesnau e Candace McCullough, duas mulheres homossexuais e surdas de nascimento, escolheram o sêmen de um doador surdo para que seus filhos também o fossem, acrescentando que a surdez é só uma forma diferente de normalidade.
O filósofo Peter Singer comentou sobre esse caso:
“Os adultos podem, se esse for seu desejo, optar por tapar os seus ouvidos e utilizar a linguagem de sinais, mas estas mães estão escolhendo deliberadamente reduzir as possibilidades que estariam abertas a seus filhos”. E acrescentou: “Privaram seus filhos de uma capacidade, a de ouvir, que quase todo mundo valoriza. Elas alegam que a surdez é só uma forma diferente de normalidade, mas dizer que a capacidade de ouvir é neutra parece equivocado, pois é melhor ter mais sentidos do que viver sem eles. Sem esse sentido não podemos ouvir cantar os pássaros no bosque, nem a música de Beethoven, nem um grito avisando-nos de um perigo.”
A polêmica sobre a surpreendente decisão desse casal desencadeou um debate ético em todo o mundo que ainda parece estar muito longe de terminar.
Fonte: Javier Sampedro por El Pais. Tradução por
sábado, 26 de dezembro de 2009
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